Data da postagem:31/01/2017
O último dia de transmissões da TV analógica na cidade de São Paulo deveria ter sido um dia de celebração para a TV aberta, um motivo de comemoração e orgulho para os radiodifusores, que indiscutivelmente concluíram, uma década depois do início das transmissões de TV digital, um ciclo histórico. A Record foi uma das primeiras emissoras a realizar uma transmissão experimental em HD na cidade, ainda em 1997, durante seu principal telejornal. A Rede TV foi a primeira emissora do Brasil a operar 100% do tempo em alta definição. Mas o que se viu no dia 29 de março foi um espetáculo grotesco de uma guerra com as operadoras de TV por assinatura por conta de uma disputa comercial. Com direito a Celso Russomano orientando (equivocadamente) o consumidor de TV paga a exigir desconto proporcional à audiência dos canais abertos que deixassem de ser transmitidos, e Luciana Gimenez ensinando o assinante a cancelar sua assinatura.
Quem conhece o dia-a-dia e a dinâmica do mercado de TV por assinatura sabe que o período de negociação dos contratos de distribuição dos canais é, normalmente, cercado de grande tensão e estresse. Os executivos responsáveis desmarcam férias e compromissos pessoais. As reuniões são longas e várias. Propostas e contrapropostas são barganhadas de todas as formas, por meses. Não é para menos. Os custos de programação representam perto de 30%, ou mais, dos custos de uma operação de TV paga. Existem quase duas centenas de canais no line-up de uma operadora, e uma fila de outros tantos querendo entrar, muitas vezes aguardando por anos uma oportunidade. No final, o que vale numa negociação é a relevância do conjunto de canais agregados pela programadora, o custo e valor percebido dos canais individualmente e, obviamente, a relação histórica do programador com o operador.
A empresa Simba, controlada por SBT, Rede TV e Record, foi constituída há menos de um ano. A sua primeira aparição, ainda como uma proposta de uma joint-venture para negociar o licenciamento de conteúdos das redes abertas, foi no começo de 2015. A criação da parceria foi desde o primeiro momento questionada pelas operadoras de TV paga junto ao Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade). Alegavam tratar-se de um cartel. Depois de idas e vindas e muitas posições divergentes entre os conselheiros do Cade, foi reconhecida a legitimidade do modelo de negociação. Mas o Cade exigiu uma mudança do objeto central da joint-venture, que passou a ser produção conjunta de conteúdo, enquanto o licenciamento de canais se tornaria um objetivo complementar. Também foi exigido que os sinais abertos fossem distribuídos gratuitamente para pequenas operadoras (com menos de 5% de market-share) e que as mesmas condições conseguidas pelas grandes operadoras fossem asseguradas para aquelas que têm até 20% do mercado. É o caso da Vivo TV, que por isso fica em uma situação mais confortável para negociar, pois pode esperar as grandes decidirem.
Do lado das operadoras de TV por assinatura, já se sabia que não dariam vida fácil aos canais abertos após o switch-off. Em 2013, quando o governo começou a estabelecer as regras de desligamento do sinal de TV analógica, o tema foi pela primeira vez discutido no Congresso da ABTA. As operadoras colocaram-se refratárias a qualquer pagamento pelos sinais digitais das emissoras abertas. E desde então, como sempre acontece, algumas coisas mudaram.
A Globosat passou por períodos críticos de renovação de contrato com a Net e com a Sky. Em ambos os casos, a TV Globo foi negociada em conjunto com os demais canais pagos da programadora, sendo por isso remunerada. A Band chegou inclusive a questionar junto ao Supremo, por meio da associação ABRA, a gratuidade na distribuição dos canais abertos analógicos trazida na Lei do SeAC. Não teve sucesso. Mas ao final, e não por isso, conseguiu assegurar a distribuição de seu canal aberto no conjunto de canais por assinatura que produz. Ao que consta, sem uma remuneração específica, mas proporcionando condições melhores para os seus demais canais pagos.
O grupo Globo começou a produzir canais pagos no Brasil em 1992. Na época, criou quatro canais do zero, sem ter nenhum assinante. Aliás, não só desenvolveu os canais como investiu em distribuição de seus sinais na banda C, por assinatura, e no começo dos anos 2000 quase foi à falência por conta dos pesados investimentos em distribuição. Mas assegurou com tudo isso uma posição de destaque no mercado de TV por assinatura.
A Band, há 16 anos, correu o risco de lançar um canal pago 24 horas por dia, o BandNews, e depois criou mais quatro canais.
As duas empresas, portanto, apostaram alto no mercado de TV paga, e hoje de certa forma colhem os frutos de um bom relacionamento.
Das empresas que se associaram na Simba, o SBT foi o único a flertar com o mercado de TV paga, como sócio da Band na antiga TV Cidade, uma operadora que surgiu no começo dos anos 2000. Silvio Santos pode até ser considerado um dos pioneiros do mercado de TV paga, tendo sido sócio indiretamente da TV Alphaville, uma das primeiras operadoras de cabo do país. A Record o máximo que esboçou foi o Record News, mas que logo se tornou um canal aberto.
Nesse contexto de pouca relação e muita ambição, a negociação entre Simba, a Net e a Sky ficou atravancada desde o começo. Trata-se de um conteúdo sem dúvida relevante para uma parcela da população, tanto que há audiência, mas que sempre foi carregado obrigatoriamente pelas operadoras de TV paga. É verdade que o SBT, ao longo dos anos, sempre reclamou de ter seus sinais distribuídos sem remuneração, mas o que a lei impunha era a regra do must-carry, e a reclamação nunca prosperou para um acordo comercial. O desligamento da TV analógica muda o comando legal e dá ao radiodifusor o direito de negociar o canal, como se fosse um programador.
Foi o que aconteceu, mas a negociação começou equivocada. Ao que consta, a Simba estabeleceu seu preço (fala-se em R$ 15 por assinante para o conjunto dos três canais) fazendo uma conta irreal, que toma por base o quanto os operadores pagariam pelo conjunto de canais Globosat, estabelecendo que a TV Globo recebe o proporcional à sua audiência (o que não é verdade, pois a Globo recebe bem menos do que custam os canais esportivos da Globosat, por exemplo) e a partir desse valor, estima proporcionalmente quanto valeriam SBT, Record e Rede TV, com base em suas audiências. Nenhum canal de TV paga é negociado com base (apenas) na audiência, pois esse conceito vai contra justamente o espírito de segmentação da indústria de TV por assinatura.
Para quem não é familiarizado com essas negociações, ajuda ler uma reportagem escrita por este noticiário em 2014 sobre o mercado de "retransmission fee" que começava a surgir. A matéria, de três anos atrás, trazia o seguinte: "apesar da grande audiência dos canais da TV Globo e da importância que eles teriam, os valores são bem mais baixos do que os valores cobrados por canais pagos de maior relevância, por dois motivos: primeiro, porque a TV aberta quer assegurar a distribuição dos seus sinais digitais nos domicílios com TV paga (já são mais de 18 milhões de domicílios, o que é muito expressivo em termos de audiência), e depois porque esses sinais estariam disponíveis de outras maneiras. Enquanto eles são transmitidos na forma analógica, os operadores de TV paga podem distribuí-los sem pagar nada (regra do must carry). E o usuário também pode captar os sinais livremente".
Se os canais abertos se mostrarem relevantes para o assinante de TV paga, não há dúvidas de que eles serão carregados e, possivelmente, remunerados. Até hoje não houve na história da TV por assinatura nenhum canal com conteúdo importante que ficasse sem distribuição, mas até lá a disputa comercial será intensa.
Até o momento, as operadoras de TV paga não conhecem os planos da Simba. Não se sabe que outros conteúdos serão produzidos pela joint-venture (como estabeleceu o Cade inclusive para compensar um possível aumento de preços ao assinante), que modelos de negócio serão praticados, que investimentos em direitos relevantes serão feitos e por ai em diante. Está faltando esse entendimento prévio, que tende a ser mais eficaz do que a força bruta da audiência de massa. Afinal, TV paga não é TV aberta, e quem paga a conta no final do mês é o assinante.
Por:Samuel Possebon
Fonte:http://convergecom.com.br/teletime/31/03/2017/simba-e-tv-paga-sem-nenhuma-sintonia/?noticiario=TL
Postar um comentário
Deixe seu comentário